A comida dos Deuses

É favor desculpar mas hoje não escrevo: ando a ir os lados de Pondá. Para o interior de aldeias Hindus aprender rituais e conhecer como eles vivem. Mesmo entre as castas mais baixas existem diferenças. Mesmo no entre os menos dos menos há lugar a poder e discriminação. Direitos e deveres seculares.
Ontem assisti descalço ao purificar das vacas sagradas no seu curral. Comi no chão com o dono da casa sobre uma folha de palmeira. Assisti aos rituais feitos com a bosta da vaca e à construção de um pequeno desenho, como que uma planta de arquitecto, de uma casa com as suas diferentes divisões e o mais que se desejaria que dentro dela entrasse. Recebi doces, muito doces, em casas de Intocáveis. Senti o fresco do chão liso, lisinho, aspergido com bosta que há ainda na casa de alguns hindus. Provei na mata a comida oferecida aos deuses. E embora nada destas descrições estejam correctas academicamente, embora nada disto esteja muito correctamente escrito, foi bom, muito bom. Abriu-me horizontes. Deu-me muitas páginas novas para escrever na memória.
Hoje é dia dos irmãos e por isso vou lá voltar até ser bem de noite.

Dobrada fria

Fui jantar com o Manuel e a comida veio fria. Nada pior que um prato de arroz frio, carne fria, chouriço vindalo frio. Não fizemos como o poeta: pagar e ir embora! Não. Ficamos e chamámos emissário da cozinha. Ele com olhar frio em varanda de ventoinhas quente olhou para nós desconfiado. Suavemente encolheu um dedo, aproximou-se, encostou-o ao arroz. Na dúvida, enterrou toda a barriga do dedo no branco: era verdade. Ficou em suspenso até a dona do restaurante aparecer e resolver o problema. Tudo para dentro. Tudo posto num só prato. Aquecido. É por isso que isto não é um poema: é que no tempo de Fernando Pessoa não havia micro-ondas.
(para a Susana)

Bêbedo inveterado

Nesta casa há pelo menos quatro línguas para conversas, português, inglês, hindi e o concanin. Entre portugueses, entre portugueses e pessoal auxiliar, pessoal auxiliar com pessoal auxiliar e pessoal auxiliar com pessoal auxiliar nascido e criado em Goa. Adoram falar hindi e concani entre eles para que a malta da metrópole não perceba. Depois (esquecia-me!), há ainda o marasta que é falado entre os seguranças que não são de Goa. Uma língua do estado aqui ao lado.
No meio disto tudo o melhor mesmo é a linguagem gestual! A única verdadeiramente universal para um tipo com virtudes de palhaço. Gosto. Vai bem comigo.
O segurança da manhã está sempre de ar muito sério, nunca vi um homem com tanto medo de tanta coisa, talvez até da própria sombra. Sempre sério. O que no seu corpo muito magro ainda dá mais efeito. Por isso, quando ele me bate pala eu bato-lhe pala também com requintes de general reformado. Brinco com ele, como com toda a gente, muitas até vezes faço caretas. Com ar assustado, muito sério, à minha frente, o pobre segurança confessou aos outros empregados que sem dúvida era uma pena: eu bebia demais.

Time Out

Passaram-se muitas coisas desde que fechei esta página pela última vez, vi celebrações de Fátima em Santa Cruz, conheci especialistas portugueses em hinduísmo e em castas, almocei num palácio goês com o Senhor Cônsul-Geral (e o Geral aqui é pronunciado generosamente como quem diz Go-ver-na-dor-Ge-ral-da-Ín-dia-Port-tu-gue-sa). Faltei a uma festa. Fui convidado para um casamento para o qual não trouxe fato. Cozinhei um jantar para uns amigos. Fiz dezenas de quilómetros na acelera. Ah, e também assisti a umas filmagens de um episódio em que duas raparigas levam um moço a sair, isto claro, para a Mtv Índia. Vamos lá ver se consigo digerir esta coisa toda.

Levitar

A Guita e a Pretti passaram-me umas camisas… costumo tirar a roupa da máquina de secar e levá-la para quarto mas esta noite esqueci-me. Hoje elas tinham feito a surpresa. E é mesmo uma surpresa, para quem apesar de empregada para fazer esse tipo de coisas mais pratica o natural levitar pela casa. Hoje fizeram-me um carinho e a Guita falando sempre em concani disse-me que não queria que andasse mal arranjado. (Acho eu, porque ela ainda não descobriu que no mundo existem diferentes línguas e que o concani não é linguagem universal.) Senti-me mais um pouquinho em casa.

Recapitulando

Os dias por aqui estão a correr muito depressa apesar da lentidão da índia. Por vezes sinto o tempo a fugir e nem de mota o consigo apanhar. Coisas novas acontecem e mudam-me a maneira de ver esta terra. Primeiro, temos que passar a viver ao seu ritmo local e, depois, e só depois, podemos compreender o que está à nossa volta.

Mentira

Faz hoje um mês que estou em Goa. Uma cultura diferente, uma forma de estar diferente, enfim, quase tudo diferente. E a única coisa de que sinto mesmo falta é… o fiambre!

Choveu

Hoje choveu. Já não chovia há algum tempo. A energia continua a falhar sempre à mesma hora. Imagino uma casa do meu bairro em que todos os dias à mesma hora uma senhora gorda vinda do trabalho acende a luz. Curto-circuito. Ninguém sabe onde é… Aqui tudo demora a arranjar. Hoje choveu. Amanhã prometem sol. Os dias vão passando e ontem fez três semanas que estou em Goa. Para comemorar gastei 400 Rupias e comi um bife. Hoje comi sobremesa. Só a escrita é que está cada vez mais difícil. Faltam dois meses para regressar a casa.

Aqui tudo demora a arranjar

Goa é como um copo de areias movediças, há católicos, hindus, parsis, muçulmanos, jainistas… (E pelo menos um agnóstico agora anda por cá.) Goa tem goeses, indianos, portugueses e uma série de pessoas que não sabem bem ao certo a que país pertencem. Há pessoas que quase me querem provar que são mais portugueses que eu. Se calhar são. Se calhar mereciam sê-lo. Goa é como um copo cheio de areias movediças. Uma misturada que faz com que nunca nada assente. Um copo que ninguém deixa assentar. É por isso que 17 de Dezembro de 1961 continua a ser ontem. É por isso que tudo isto ainda está tão fresco e continua a ser conversa à mesa. É por isso que aqui a inquisição, conversões, libertação, invasão, Operação Vijay, expropriações foram todas ontem. Aqui o Salazar, Nehru, Vassalo e Silva, Krishna Menon, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque e ainda São Francisco ainda não morreram. São eternos. Ninguém os deixa morrer. O copo anda sempre de mão em mão. O copo nunca poisa. Ninguém o deixa poisar. Aqui a identidade é assim. Aqui identidade é isso. Aqui o que pensamos está sempre errado. Ninguém descansa. Porque aqui tudo foi ontem.

Tempo

Fui a casa do guardião dos segredos de Goa. Fui a casa do homem que sabe sempre tudo, guarda tudo, conhece tudo. Fui a casa da referência de uma geração, de uma parte simbólica da sociedade Goesa. Conhece quem esteve; quando esteve; porque esteve e; sobretudo, porque se foi embora. Para este homem não há segredos.
À mesa um grupo de pessoas perguntavam coisas, desfolhavam livros. «Tenho mais de seis mil livros.» Sobre a mesa o livro branco de Franco Nogueira revelava os telegramas de Dezembro de 1961. Era um homem bonito. Muita idade. Doce. O empregado serviu-me chá e a lata de leite seco para eu adicionar. Sobre a grande mesa passeavam livros, fotografias, cartões de amigos, recortes de jornais. Refeições.
O guardião já quase não guarda, não cheguei a tempo, mas nem que fosse apenas por respeito: regressar.

A importância de se chamar...

Uma festa. Toda uma geração da juventude goesa compareceu. Ninguém faltou. Nessa festa havia gente, toda essa gente tinha um nome, todos esses nomes fumaram substâncias pouco legais aos costumes goeses. Entre esses nomes estava o de uma estrangeira vinda dos Estados Unidos. A festa foi gira. A americana gostou da festa, pá!
Um ano depois a estrangeira escreveu um livro, no livro descreveu a casa, na casa pôs o nome das pessoas. Até a morada! Nada ficou nada por contar. Hoje está à venda nas melhores livrarias goesas: o que vale é que também por aqui as autoridades não são dadas às letras.

Delicastrense

O Pedro em três dias de mota foi parado duas vezes. Duas vezes quatrocentas rupias de multa. Duas vezes a corda na garganta. Duas vezes a funesta ameaça de lhe ficarem com a mota.
Passei quase duas semanas com a minha mota e aguardo a minha vez: que me digam que tenho que ter carta internacional. Que me levem preso. Que.
Já há apostas sobre a forma de como me lixo. Já há quem faça contas sobre se, tudo junto, o valor das multas me fica mais caro ou mais barato do que a carta internacional.
Começo a ter medo de pegar na mota. Começo a andar de mangas para baixo, esquecendo o calor, tentando me parecer mais com os costumes locais. Começo a evitar ruas e, constantemente, a pensar: é agora. Até que alguém me esclareceu porque ainda não fui apanhado: «tens é cara de puto riquito que vem de Deli!» Só me mudam as terras, o estigma perdura.

Sol aos quadradinhos

«No tempo de Portugal é que isto era seguro», já me disseram esta frase três vezes. A ideia criada ocupa muitas cabeças. Num gesto irreflexivo puseram-se grades nas portas, janelas. Respiradores. Põem até grades em janelas que dão para pátios interiores como se desconfiassem deles mesmos durante o sono. A sensação de insegurança dominou os goeses e os indianos. Já não há casas abertas em Goa.
As televisões nunca falam de assaltos. Os jornais não dizem uma única palavra sobre a gatunagem. E ninguém me sabe dar um exemplo de um acto ilícito (se esquecermos a corrupção!).
O Paulo alugou um apartamento. O apartamento é bom. O apartamento é grande. O apartamento fica num terceiro andar alto com uma linda vista para o mar. O Elano apenas disse uma frase: «mas doutor, não tem grades. Very dangerous!»

Beijaria beijarias beijaria beijaríamos beijaríeis beijariam

O que custa não é o calor, nem o ar condicionado extra-forte, nem as falhas de energia provocadas pela sub-carga de turistas. Nem sequer os mosquitos. O que custa aqui é mesmo a censura que apaga os beijos nos filmes da televisão. É como se eles nunca tivessem sido dados. O que custa aqui é os homens andarem de mãos dadas na rua, as mulheres de mãos dadas também, e nunca, mas mesmo nunca haver um homem e uma mulher num singelo gesto de carinho. Aqui não se vêem as cores do amor: há três semanas que não vejo um beijo.


Farmácia Meneses

Pois seja muito benvindo à melhor farmácia do mundo! Farmácia Meneses, temos de tudo e, temos bem! Só queremos que nunca lhe falte nada: esparguete, Ácido acetilsalicílico, esfergões e, xaropes. Detergentes para os dentes, para a loiça e, para o chão. Há de tudo, venha ver: nimesulida, piaçabas, Amoxicilina/Ácido Clavulânico, benzinas e, chocolates nacionais e estrangeiros. Temos igualmente uma vasta gama de antibióticos guardados na cave.
Entre os nossos produtos pode ainda encontrar linhas para costurar pessoas, calças e, botões. Shampoos quatro em um e sabão, macaco. As nossas batatas fritas têm mil sabores diferentes. E até vendemos vacinas para rabinhos de meninos.
Venha e, venha sempre, que nunca se arrependerá: e se nos avisar com 24 horas, também se lhe arranja um elefante… em porcelana, emprestado pelo dono da bomba de gasolina em frente.

Flu

Uma gripe meteu-me na cama. O pior não é a cama; o pior não é a gripe; o pior, mesmo, é a cama e a gripe com o raio do calor que faz. Não dá para ficar de cobertor ao quente. Não há frio para o prazer do quentinho dos lençóis. Não há caldinhos de galinha. Nem Ritinhas solícitas para tratarem de nós. Que venha daí uma dose de cavalo de antibiótico porque estar doente nesta terra é uma valente seca.

Pendurados

Isto podia ser inventado, podia até ser brincadeira de escriba, garantem-me que não: nos finais dos anos noventa, havia uma parede do Hidalcão com fotos de todos os líderes até então. Era uma parede onde se iam acumulando os retratos sem mais nem porquê. Nessa parede e apenas nessa parede, Salazar era vizinho amigável de Nehru. O Almirante Américo Tomás estava a poucas braças de Gandhi. Confesso o meu constrangimento, Gandhi não merecia semelhante humilhação.

Palácio do Hidalcão

Fico triste quando entro nas ruínas de um palácio antigo e vejo que desapareceram todos os símbolos deixados pelos portugueses. Nem um simples recado da história. Conto isso a J que me diz seco: «mas isto já não é Portugal…» Eu sei e congratulo-me por isso. E também sei que podem fazer o que quiserem dos seus monumentos. Podem até apagar toda a memória portuguesa, estão no seu direito. Em mim não réstia nenhuma de paternalismo colonialista, porque aqui tão longe não é a história portuguesa que estão a apagar mas sim a história goesa, a história da Índia. O seu passado. O nosso passado comum. Até percebo que o tivessem feito logo a seguir à largada dos portugueses. Mas não me entra na cabeça que o continuem a fazer 47 anos depois. Quantas gerações mais serão precisas?

O segredo de Gandhi

O José Miguel com os seus quase 100 anos de Índia afirma que a grande magia de Gandhi não está em ter inventado o pacifismo como arma, mas no facto de ter dado uma entidade comum e una a um subcontinente. A princípio não percebo o que quer dizer. «Isto é do tamanho de um continente. Múltiplas realidades, múltiplas culturas debaixo do mesmo chapéu-de-chuva inglês, o que sobraria em comum depois do final do Raj? Ao resgatar tradições como a produção do tecido kadhi, procurar antigos trajes, rituais e ao puxá-los para os dias de hoje estava a dar uma identidade comum a toda esta gente.» A criar uma nação.

Afugentar mosquitos

No fim do dia um fumo ligeiro suspenso sobre o ar. A passagem do dia para a noite sempre tem um cheiro húmido, queimado, com sabor a turfa.

New season

A season começou mesmo. Em apenas meia hora fui abordado por mais de vintes gajos para venderem-me sedas, tapetes e afins. Apesar dos meus chinelos, apesar dos meus calções, apesar da minha pele, apesar de tudo, devolvam-me Goa, posso não ter nascido aqui mas eu quero a minha Goa de volta!

Derradeira batalha pela independência!

Um enorme ajuntamento. Rua seguinte o mesmo. O maralhal transbordou do passeio e já ocupa a estrada. Falam baixo, mas indignados, o assunto é sério. O trânsito pára. O calor aperta. Podia até cair um dilúvio que ninguém se ausenta. Na montra da loja há um televisor, no televisor está um programa, o programa é em directo. Em directo a índia está a vencer a derradeira batalha contra a Inglaterra… em cricket.

Os ocidentalizados

A sociedade mais à frente faz os seus encontros de negócios no Coffee Day. Os adolescentes mais ocidentalizados namoram no Coffee Day. Os turistas de chinelo matam saudades dos outros continentes no Coffee Day. Até o Donuts parece de outro continente: deve ter vindo a pé de tão duro que está.

O outro Mexia

Na biblioteca central as ventoinhas caem do céu e fazem circular o ar parado há muito. Jovens estudantes fazem cartões de leitores de leitores. Pedem livros. Imagino-os a trocar recados entre as estantes com moças de castas inferiores às escondidas das preceptoras. Há muitos documentos guardados à espera de estudo. Muito papel acumulado à espera de fogueira. Muita coisa para estudar. Mais ainda para perceber.
Nada disso me importa, chateia-me a descoberta de que no território literários goês já foi ocupado de forma indelével por um outro Mexia. Parece que o primo Afonso escreveu um exemplar único que, assim, de uma só vez, marcou os escritos sobre esta fecunda terra. O Afonso, certamente o literato na família, deu em conjugar uma série de dados sobre Goa e condensar tudo isso numa espécie de tratado. «Graças a Mexia podemos hoje saber como foi como viveu toda uma geração.» Um homem no seu tempo, o foral de 1526 ainda hoje dá cartas. Dizem mesmo que é primeiro documento da história de Goa.
Todavia, resta-me uma vingança: o primo Afonso já não mexe.

Erro de cálculo

O que é que eu vim a Goa fazer? Escrever um romance com a invasão como pano de fundo. Estúpido! Não há gato pintado que saiba ler e escrever nesta terra do tamanho do Algarve que já não tenha escrito esse livro.

Matryoshka

Um casal de russos comprou uma grande propriedade junto à praia. Fez uma grande casa. Gastou uma grande fortuna. Fez uma grande festa. As forças vivas goesas apresentaram-se todas: hindus, católicos, políticos, militares e o mais que houvesse. Foi um sucesso. Um sucesso retumbante. Pelo menos até ao momento em que entraram as bailarinas russas semi-desnudas!

Verão

Aqui o verão não é promulgado em despacho oficial nem dia marcado. Aqui o verão começa com primeiro voo charter e só acaba depois de levantar o último. Hoje começa o verão e, segundo muita gente, começam os horrores: filas de trânsito, preços mais caros, dejectos na praia, tipos que vêm para aqui apenas para beber porque não o podem fazer nos seu estados de origem. Goa deixa de ser um pouquinho menos nossa (goeses).

Elano

Hoje o Elano faz anos. A Preetti bateu-me à porta do quarto para me entregar um pequeno prato com uma fatia de bolo de chocolate e um folhado spice. A esta hora vou deixar o spice para mais tarde.

Salazar e o seu legado

Goa não é um estado dentro de um país mas dois estados de dentro de um dos maiores países do mundo. Dois estados, duas sociedades, duas religiões, duas culturas. Duas formas de estar diferentes. E mil visões diferentes sobre passado colonial português. Os laços entre toda esta gente só pode ser o futuro. A preservação do meio ambiente. A divulgação das diferenças culturais como uma mais valia que é. A preservação do muito que ainda há para preservar quer de tradição portuguesa, quer de tradição hindu. Mas terá que ser uma descoberta a ser feita por eles, qualquer sugestão, aqui, soará a Salazarismo.

nada a declarar

Na chegada Mumbai o polícia mandou-me para a zona de coisas a declarar! Estava a tentar passar duas máquinas fotográficas... Depois, não queria acreditar que eu era europeu, da comunidade europeia, com passaporte e tudo. «Mas o seu pai é indiano?», ainda tentou. Respondi que eu sabendo, até agora: não!
Mas glória das glórias foi ao darem-me uma indicação de um sítio a visitar. Perguntei: fica à frente de quê? Há aí alguma loja grande? De que cor é o prédio? Há algum restaurante em frente? «Tens a certeza que não nasceste em Goa?»

A minha língua na tua língua

Hello, can I speak to Mr X, please? «Just a moment. Oh, X é aquele portugué que quer falar contigo ao telefone.»

Canícula

A chuva da tarde passou para chuva da manhã. Sempre à mesma hora. São os últimos cartuxos no que à monção diz respeito. Depois, virão os mosquitos e, finalmente, o calor. Calor, aqui, quer dizer muito.

sobre a mesa

Parece um filme sobre um estranho vírus ou uma efabulação de Manuel Oliveira sobre a Bela Adormecida: à hora do almoço uma estranha letargia toma a casa. Fazem a corrida das cadeiras. Cada um encontra o seu poiso e… dorme uma hora sobre a mesa.

Sou caipira, pira, pora

Estou? Olá. É só para dizer que a vela está acesa. Beijo.

Gandhi Day

Este Gandhi Day foi a comemoração do 138 aniversário do nascimento do pai da Índia. O Mahatma. Nesse dia é feriado, feriado seco, por isso é proibido vender bebidas alcoólicas. Toda a gente respeita o facto sem que a idoneidade de Gandhi seja por isso posta em causa. Duvido que me Portugal alguém deixasse de beber a sua bejeca no dia de Camões, até porque feitas as contas, é sabido que ele para além de gastar muito de mulheres também se perdia por uma boa pinga!!!
Aqui tudo parece sereno, quando um estrangeiro cliente habitual de um estabelecimento se finge de esquecido e pede uma cerveja, recebe como resposta um bule de chá…com cerveja dentro!

Roma do Oriente

O padre-santo deitado no mesmo lugar. As igrejas de velha Goa têm uma magia qualquer, sobretudo as que estão em ruínas, pensamos em quem por lá andou, a fé de quem permaneceu em todos aqueles conventos. Mais que edifícios, ali vejo gente, histórias, pessoas que permaneceram na clausura rezando. A fé em São Francisco Xavier vai muito além da fé dos católicos, é normal ver hindus a acenderem velas ao santo espanhol baptizado de português. Estranho, mas com muita mística. O espírito jesuíta permanece apesar das missas em inglês.
Junto à porta dos vice-reis dei por mim sozinho a rir, da última vez toquei aquelas pedras pensei: «nunca mais cá venho». Ao fundo junto ao rio encontrei o Brandão Lucas. Parei por instantes e só me saia 1 X 2, não me lembrava do nome do autor dos fantásticos documentários do Totobola. Andava ele a filmar um documentário para a RTP internacional com o tema: tão perto de casa.

Alexandre

Dona Paula era a praia onde iam todos os portugueses de bem. Nas entrevistas em Lisboa as memórias diziam-na linda! A Edila falou-me das noites de luar em que tomava banho e comia maçãs frescas. Dona Lucinha falava das brincadeiras na areia com os filhos e os barcos da marinha indiana no horizonte a dois dias da invasão (Eu disse invasão? Desculpe, Edila!). Tudo em mim apontava aquele cenário para o livro. Ontem, na minha acelera fui estudar o território: Grupos de camionetas despejam grupos de indianos, criancinhas correm de um lado para o outro, centenas de trabalhadores entre os turistas carregam ferro para construir não sei muito bem o quê. Dona Paula perdeu o título e nem meretriz agora é.

Varadero XL 1000V

Uma acelera pode provocar uma significativa melhoria na qualidade de vida, mesmo não tendo 1000 centímetros cúbicos de cilindrada. Mesmo 100 cavalos!

Caramelos

No Little Presidency Super Market há de tudo um pouco, temos que perguntar muito e muito até encontrar o que realmente precisamos. Os meus produtos favoritos são os iogurtes (curd) dentro de pequeninos saquinhos de plástico e a «vaquinha que ri» para a torrada do pequeno-almoço. Tudo o que não é nacional tem logo um preço duas a três vezes superior. Há produtos que são mesmo mais caros que na nossa pátria lusa. Todavia, há sempre uma compensação: coisas frias são embrulhadas por um funcionário em papel de jornal.
A gaveta do caixa tem o espaço bem dividido: um terço notas, um pequeno compartimento para moedas quase sempre vazio. E muitos rebuçados. Quando não há trocos em moedas dão-nos um rebuçado. Pode não ser homologado pelo FMI mas pelo menos é doce!

SMS

Quando o avião levantou de Barcelona a Rita escreveu: «estou voando de novo. Espero que da próxima seja para ir ter contigo». Hoje fechámos a loja.

Autopsicografia

A cada carro velho a cair de podre vejo um oficial português dentro. Um alto responsável pela nossa governação. Motas velhas imagino grupos de oito soldados a comprarem com esforço a mota com o pré amealhado durante um ano. Uma vespa antiga e imagino um menino bonito do Estoril que comprou a mota com a mesada para levar as filhas dos oficiais superiores a ver-o-mar a Dona Paula. No Cofee Day por entre um café expresso de contrafacção e uma música ensurdecedora vi a uma menina de 16 anos: finos gestos, face simétrica, bebe uma bebida gelada ao estilo Starbucks. Levanta-se e põe a jukebox a tocar a Shakira. Imagino uma descrição para o rosto, a sua perfeita descendência brâmane, os rituais do casamento hindu lá bem longe nos territórios das novas conquistas.

Gravata preta

O Paulo disse à Patrícia e ao Pedro que ia de certo precisar de uma gravata preta para os próximos dois anos em Goa. É verdade. Há uma geração que está a desaparecer, hora a hora, dia a dia, mês a mês. Memórias que se lavam após cada estação das chuvas. Ontem morreu um senhor que eu deveria entrevistar. Já não cheguei a tempo. Mas querendo eu começar uma vida nova e desfazer-me da minha fama de jornalista – o tipo que mata os velhinhos todos! -, talvez tenha sido melhor assim!

Pangim

Já tive em Óbidos, Monsaraz, Paraty, Ouro Preto, Malaca… Apesar de toda a poluição envolvente, os caracteres estranhos, as Ganeshas, a degradação do património e o diabo a sete esta cidade começa a parecer-me a mais portuguesa. Só pode ser o Anopheles. Malária.

Igreja da Imaculada Conceição

No único pedaço de estrada sem um buraco na rua de Pangim, bem em frente da igreja, uma vespa acelerava no asfalto, um tipo, preso, agarrado, pendurado à mota fazia avarias sobre a estrada. Falava alto. Dava nas vistas. A população olhava. Em cima dos rollerblade voava baixinho. Não estava particularmente limpo. Não parecia particularmente educado. Ah, e também não tinha um braço.

Brainstorm

Conheci uma figura fantástica, muito provavelmente, a melhor memória viva de Pangim. Nos breves momentos em que conversámos aprendi uma lista de coisas. Quando será que arranjamos uma forma de congelarmos a memória? Ou um software que grave tudo em DVDs para depois podermos visitar. Bem esta prosa parece aquele filme com o Christopher Walken e a Natalie Wood … Revolvendo no tema mais ao jeito de Goa e como diria o meu amigo jesuíta: «Duarte, isso seria a imortalidade.»

Está tudo explicado

Falei com Alice à noite pelo Skipe. Viva a banda larga. Ela escreveu um email ao amigo embaixador a contar que estava em Goa um jovem escritor - ex-jovem qualquer coisa - chamado Duarte Mexia. E que por sinal era um tipo porreiro. Eu. O embaixador recebeu o dito cujo no portátil quando foi ver o Weather Channel ou outra coisa que lhe tenha valido a pena. Quando me apresentei, disse: «ah, então você é que é o Duarte Mexia» e deu-me um cartão com o telemóvel, email e tudo o resto. «Dê-me notícias suas», disse.
Como teria ocorrido tudo isto em 1961, o ano da invasão?
Eu escreveria uma carta a falar da visita do embaixador para daí a um mês… Ou mandava um extenso aerograma, via aviões da Taip - Transportes Aéreos da Índia Portuguesa. Ambas hipóteses, todavia, aparecem pouco prováveis porque a alta entidade apareceu em conversa por mero acaso. Depois a Alice enviaria um radiotelegrama ao amigo para Deli. O funcionário da embaixada na Capital indiana, preocupado e funcionando como todos os funcionários deveriam funcionar, reenviaria o dito cujo para o hotel com um acrescento em jeito de comentário: «Achei oportuno enviar. Espero que não seja grave. Atentamente seu… e depois o nome do funcionário supra mencionado.
À noite, regressado ao quarto e ao ler a missiva perguntar-se-ia a si mesmo… «qual dos gajos seria o Mexia?» Eu. O moço meio engraçado, cabelo mais curto do que natural devido a não querer mudar de barbeiro e de calcinha bonita apesar do calor húmido.
Após o fracasso nas apresentações eu tentaria mandar um telegrama a dizer: «Não consegui falar com o homem stop. Por aqui chovem canivetes stop saudades stop D stop (só D que era para poupar na conta porque isto pagava-se à letra!).»
Foi por essas e por outras que no 17 de Dezembro de 1961 as tropas portuguesas em vez das pedidas munições para metralhadora, antiaéreas e tanques (poucochinhos) receberam: pás-de-porco, carne de vaca e chouriços!

Vitória

Segundo o Heraldo há quatro jogadores goeses a jogar no Vitória de Guimarães. Grande jornal. Como é que uma notícia destas passou aos gajos da Bola, do Record e do Jogo?

Chuva de estrelas

Aqui fica a faltar um grande texto sobre o Vem Cantar, uma espécie de chuva de estrelas em português. Acontece todos os anos aqui em Goa. As emoções foram fortes. Tento fugir a elas. O que quer que escreva nunca será exactamente o que me passou pela cabeça. Uma ideia apenas martela: «Goa é o único sítio do mundo onde falar português é sinal de distinção social. Falar português em Goa é apanágio de elite culta. Em mais lado nenhum do mundo isso é assim.» A minha língua na tua língua já dizia Caetano.

Vaca sagrada

Pela noite, quando as ruas ficam livres dos camiões, carros, motas, riquexós, bicicletas e afins e finalmente a cidade dorme, as vacas tomam-na e regressam a casa em fila indiana (!). Tímidas. Como quem sabe que o território só é seu por poucas horas. Pela manhã serão ordenhadas e fugirão de novo em busca de pasto verde.

Someone to Watch Over Me

Sempre que chego à Fundação o guarda levanta-se e vem abrir-me o portão. Muita vezes isso só atrasa o meu percurso: abrir o portão é só empurrá-lo. O guarda da noite, sempre que eu entro sorri e bate-me pala como se eu fosse um general. Eu, que sou português nascido no tempo da outra senhora mas sou pelas igualdades de oportunidades e completamente contra o Acto Colonial que vigorou depois de 8 de Julho de 1930, respondo-lhe: bato pala também. A coisa tem tido resultados. Agora, ele já me dá uma ligeira pancadinha nas costas. Aguardam-se desenvolvimentos.

Mrs. Linda D’Souza

Ela comanda toda a casa e os empregados de lacinho e colete andam a toque de caixa, aliás, como em toda Índia. Numa mesa do restaurante comanda a sala, a outra sala com ar condicionado, a cozinha e as duas mesas da rua via janela. Na primeira noite, veio falar-nos à mesa para cumprimentar o Paulo. Individualidade de respeito para as gentes de Pangim. No caminho falou do admirável ex-cônsul de Portugal. «Rapaz novo, bonito, muito educado, bem vestido, simpático, que encantava» as gentes goesas. Por alturas do mundial de futebol fez uma espécie de segunda conquista com bandeiras vermelhas e verdes e até cascoles (e como são necessários nas gélidas índias!). A morte levou-o mas não o esquecimento. Esta manhã, estava eu sozinho, prestes a comer algo parecido com um pequeno-almoço, lá apareceu com seus criados. Memórias do jovem cônsul falecido em desgraça e a imensa saudade que sente de tão brilhante pessoa. «Very polished.» Pelo jantar, novo encontro, nova troca de palavras de circunstância e, a memória é como o picante, nunca falha: o cônsul à cabeça da ementa e os dispendiosos peixes grelhados que eram os seus preferidos... Só por inveja vou comer caril e mostrar à Mrs. Linda D’Souza com quantos chapatis se faz um verdadeiro português!

Vamos brindar

No hotel Marriott a cerveja vem sempre quente. A estrutura em betão recente é forrada a madeira exótica e a banda começa a tocar. Para todos os indianos na sala aquela é música Goesa, com certeza. A grande janela sobre a baía e a Aguada do outro lado do rio lembram-nos a monção. O som da natureza aparece em estereofonia. Raios, algum vento, coriscos! Já tocaram a casa portuguesa, o vinho verde deste meu Portugal, é altura de pagar… Doninha, não sobrevivemos a outra música, se ao menos fosse Da Weasel!

Em estado quase novo

Ao telefone contou tudo o achava e o que ainda haverá de achar daqui a mais uns anos. Fala com energia, entusiasmada, agressiva. Decidida. Por instantes deixei cair umas palavras como quem constrói pontes: Presidente do Conselho, Mário de Figueiredo, Doutor Paulo Rodrigues (que nem era mais Doutor que os outros, apenas mantém a especial apetência de permanecer vivo), a Tia Mariazinha no Areal. E um sem número de palavras e expressões do antigamente. É que aqui, o antigamente permanece hoje para certas famílias. A conduta salazarista mantêm-se. Num certo mundo de cá ainda é Portugal, Lisboa é que foi conquistada pelos espanhóis.

Senhor Bento

Circulava como circulam os que não tem caminho. Numa parede uma cor conhecida, uma imagem de excelência, um símbolo distinto de Portugal. Sorrio. Dou um passo atrás e volto a sorrir pelo prazer de estar certo. Dentro da pequena loja alcanço uma confirmação numa página de jornal na vitrine. Na fotografia, todos distintamente vestidos às ricas, a rigor, de corpo hirto, a sorrir para a posterioridade. Deduzo que se trata de um jornal antigo. Engano-me. O proprietário do estabelecimento dirige-se a mim e estende-me a mão: «então de onde é o meu amigo?» Lisboa, respondo. «Tenho muito prazer em que entre um pouco. Como se chama?» Duarte, Duarte Mexia, deixo sair, e o meu amigo? «Bento. Senhor Bento.» Ah, como o outro?, digo não resistindo à tentação.
«Sim, como o outro. Então esta noite lá ganhámos aos penaltis? Uma vitória esplendorosa.» Sim, vi o jogo na televisão, não jogamos mal! «Sabe, aqui em Pangim temos o núcleo do Sporting Clube de Portugal. Temos muita honra e tradição. Já desapareceu o do Benfica. Já desapareceu o da Académica. Mas o do Sporting permanece a jogar. Gostava que o meu amigo me viesse visitar mais vezes.» Sim, Senhor, Senhor Bento, virei.

Royal Enfield

Um tipo com uma mota como a do meu pai quando eu era puto está a buzinar em frente ao jardim. Arranca sobre o cruzamento. Ouvem-se buzinas ao fundo… Estamos em Goa: ninguém morreu!

Palolém

Pangim desta vez parece-me mais escura. Casas a precisarem de cal e banhos de cor. Agora, Portugal não me surge como uma pátria distante, no entanto, tende a desaparecer um pouco todos os anos depois das chuvas da monção. Na curta conversa com o Paulo, o cenário adensou-se: os preços das casas começam a imitar Mumbai (e porque não New York), as velhas famílias tendem a morrer sem passar testemunho do que já não existe. Agora a Índia é a quinta economia do mundo, o dinheiro está do lado de cá e já ninguém se assusta com caravelas ou aviões da Taip. Restamos aqui para manter o espírito… Uma certa tradição. Uma teimosia.
Dizem-me que a costa foi tomada de assalto: «há praias que já parecem o Algarve. O mau Algarve.» Casas apalhaçadas em alumínio, cimento e chapa florescem por toda a parte. Arrependo-me por me ter comovido ao ver Matt Damon a correr na praia de Palolém em busca da identidade desconhecida. Como vou explicar à Rita que a praia que me fez vir escrever para este lado do mundo já não existe? Como explicar que a cabana junto à praia não se vai voltar a repetir.

No mundo de cá

Ao lado da casa da Fundação há uma escola: um barulho de fundo de crianças a brincar que me agrada. Comparado com o som das buzinas das motas, carros e afins soa a música. As gralhas também fazem jus ao seu nome. A selecção musical no disco duro do portátil vai ter que aguardar, esta música lembra-me que finalmente estou a-q-u-i.

Grandes remédios

Os remédios para a família Figueiredo chegaram a Goa. Tentei ligar para casa ancestral em Loutolim mas a senhora não estava. Parece que Dona Georgina Figueiredo, uma das últimas matriarcas goesas, está bastante mal de saúde. Temo por ela, pela minha história e pela possibilidade de que quando acabar a escrita esta pátria incerta já não exista.

Começo, início, primórdio

Madrugada. A nova ala do aeroporto de Mumbai parece uma espécie de estrutura Calatrava pré-fabricada ao indian way. Na casa de banho o rapaz faz questão de me carregar na torneira para a água correr. Retira as toalhas de papel da parede para mas dar. Fico preso por instantes sem saber que fazer. Dirijo-me ao secador eléctrico e digo: «não… thanks». Acorda. Desperta os sentidos. Estás do outro lado do mundo